CANTOR E COMPOSITOR

O INICIO DA PRODUÇÃO MUSICAL (IN) DEPENDENTE NO BRASIL

02-06-2011 03:52

 

O INÍCIO DA PRODUÇÃO MUSICAL (IN) DEPENDENTE NO BRASIL

Para iniciar este pequeno ensaio, no qual o foco é basicamente os discos independentes, as pequenas gravadoras e os selos, transcrevo um trecho da entrevista dada por Paulo César Pinheiro à Luiza Nascimento, do jornal on-line “A Nova Democracia”, no ano de 2003. Entrevista muito elucidativa com relação ao assunto a seguir.

AND - Está surgindo algo no Brasil que te atrai?

Paulo César Pinheiro:

“Adianta citar? Você conhece Pedro Amorim? Roque Ferreira? Não adianta, o repórter não vai nem escrever isso, não interessa, não chama atenção de ninguém. Agora, essas pessoas não estão na ‘mídia’. Por exemplo: Estruturou-se em três anos uma gravadora chamada Biscoito Fino que faz exatamente isso: grava pessoas que ninguém conhece ou que as grandes gravadoras já mandaram embora, que foram descartadas. Além dela, tem a Acari, a Kuarup, a Lua; são vários selos. Hoje existem mais selos independentes do que gravadoras. E 90% da música de qualidade são produzidas pelos selos independentes. Gravadora é para Zezé de Camargo e Luciano, ou seja, produto para vender e no ano seguinte ninguém sabe o que aconteceu; é descartável, não é história, não é arte. Não é música, é entretenimento. Arte é atemporal e entretenimento é temporal. Por isso, os que formaram a nossa identidade estão aí, até hoje”.

A renovação de uma manifestação artística em um país seja ela nas artes plásticas, cinema, teatro, literatura ou música, ocorre quase sempre a passos muitos sutis e suaves, somente percebidos anos depois quando já há uma certa distância do objeto de estudo. Com a volta do disco independente em 1977 com o lançamento do disco “Feito em Casa”, de Antônio Adolfo, houve uma retomada deste tipo de produção. Quando digo “retomada”, refiro-me que tal experiência já fora experimentada nas décadas de 1920, 1940 e 1950 com os chamados discos de “Edição do autor”, nos quais os mesmos eram produzidos com dinheiro próprio dos compositores.

Na verdade, um dos primeiros trabalhos independentes que temos notícia foi feito pelo poeta, letrista, cantor e produtor paulista Cornélio Pires (1884 Tietê/1958 SP). Segundo o pesquisador Paulo Luna in “Dos braços dessa viola à dissonância de uma guitarra: A tensão entre tradição e modernidade na música caipira e sertaneja” (Dissertação de Mestrado, UERJ, 2005), em 1928 o primeiro “showman” brasileiro apresentou à gravadora Columbia o projeto de gravação de discos caipiras, que foi rejeitado. Pagou do próprio bolso a produção de uma série especial de 25.000 exemplares, vendidas apenas no caminho da cidade de Jaú. O sucesso foi imediato e exigiu novas prensagens. Os discos estavam divididos em cinco séries: humorística, folclórica, regional, serenatas e patriótica. Os primeiros foram lançados em maio de 1929 e trazia ele mesmo cantando. Editou folheto para divulgar seus shows e os discos da série caipira eram vendidos na porta de teatros e circos. Outro exemplo disso foram as 35 cópias do disco com a valsa “Está chegando a hora”, interpretada por Carmen Costa. Lançado em 1942, a própria cantora pagou as cópias dessa versão em português da música mexicana “Cielito lindo”, feita pela dupla Henricão e Rubens Campos. Em pouco mais de um mês a cantora entrou definitivamente para a história do carnaval e da MPB. Em 1958 o compositor mineiro Pacífico Mascarenhas pagou, produziu e lançou o LP “Um passeio musical”.

Em 1972 foi lançada a série “Disco de Bolso”, encartada no jornal O Pasquim. O compacto simples trazia de um lado Tom Jobim interpretando “Águas de março” e do outro lado, o também estreante em disco, João Bosco interpretando “Agnus Sei”, primeira parceria com Aldir Blanc. O disco foi lançado pela Zen Produtora Cinematográfica e Edições Musicais Ltda, portanto, independente com relação às grandes gravadoras atuantes na época.

Em 1973, no Recife, Lula Côrtes e Lailson lançaram, de forma independente,
o LP “Satwa”. Neste mesmo ano, ainda na cidade de Recife, Marconi Notaro lançou o LP “Marconi Notaro no Sub Reino dos Metazoários”, disco que contou com a participação especial do guitarrista Robertinho do Recife e ainda de Zé Ramalho, sendo este o primeiro registro da voz do cantador.

Em 1975 Lula Côrtes e Zé Ramalho lançaram, pela fábrica e gravadora
Rozenblit o álbum duplo “Paêbiru – O caminho da montanha do sol”, para
o qual, reza a lenda, foram feitas somente 200 cópias, portanto, considerado
independente. Porém, o boom do disco independente começou ainda na
década de 1970 com os pioneiros Antonio Adolfo (“Feito em Casa” 1977),
Tharcisio Rocha, Chico Mário, este último um dos fundadores da APID
(Associação dos Produtores Independentes de Discos) que em seis meses contava com 600 associados. Outra fomentadora deste tipo de produção foi
a COOMUSA, cooperativa que lançou discos de Claudio Latini, Tharcisio
Rocha, Maurício Tapajós e Márcio Proença, entre outros.

Em 1979 esse movimento de disco independente teve seu auge, pelo menos em termos de vendagem. O grupo Boca Livre (Cláudio Nucci, Zé Renato, David Tygel e Maurício Maestro) obteve grande sucesso de vendas com seu primeiro LP.

Na última década do século XX e nos dois primeiros anos do século XXI, a música brasileira passou por uma total renovação, dado a fatores diversos. O disco independente foi um dos principais destes fatores. Isto, em decorrência dos baixos custos de informática e socialização dos meios de produção do CD. Com isso, surgiram pequenos selos e pequenas gravadoras que aglutinaram boa parcela dessa produção independente.

Com os custos de produção fonográfica relativamente baixos os selos se espalharam por todo Brasil e os discos foram surgindo, inclusive fora do eixo Rio-São Paulo, como é o caso do disco “Caruá”, de Zé da Flauta e Paulo Rafael, lançado em Recife no ano de 1980.

No inicio da década de 1980 surgiu em Niterói o selo independente Gente Nossa, idealizado pelo letrista e produtor Bira de Oliveira. Por esse selo, cooperativado, foram lançados vários compactos simples e LPs, entre os quais os de Danilo Braga, Bira de Oliveira e Carlos Blanco. Na década de 1990, também em Niterói, foi criado pela prefeitura da cidade, na gestão de Jorge Roberto Silveira, o selo Niterói Discos, pelo qual foram lançados cerca de 100 discos de artistas variados, entre eles os discos de Júlio São Paio (Sinfonia Batucada), Zé Netto, Almanir Grego, Paulinho Guitarra, Glória Latini, Paulo Ciranda, Arthur Maia e Cássio Tucunduva. Em plena atividade em 2008 o selo lançou o CD “Mar azul”, do baixista Luiz Alves.

Entre as centenas e centenas de selos podemos citar alguns que congregaram artistas de determinadas tendências, partindo assim para uma pequena formação de pequenos movimentos (às vezes muito dispersos), contudo constituindo e demonstrando uma identidade musical comum a todos que deste ou aquele selo e/ou pequena gravadora, participam e integram seu cast: Gravadora Trama (Luciana Mello, Jair de Oliveira, João Marcelo Bôscoli, Pedro Mariano, Simoninha, Lula Queiroga etc); Gravadora Velas (Chico César, Lenine, Adil Tiscati, Batacotô), Gravadora Regata (Paula Lima, Funk Como Le Gusta etc), Guitarra Brasileira (Renato Piau, Elza Maria, Marko Andrade, Antônio Rogério & Chiko Queiroga, O Tom do Leblon, Conexão Carioca nº 1 e nº 2 e ainda Balaio Atemporal com artistas de vários estados do país, além de disco instrumental de Marco Campos, Cláudia Amorim, Aliança 21 - da dupla Mahal e Tigrão -, “Heloisa Helena Canta Luiz Melodia” e ainda o CD “Umbigo”, de Elza Maria, entre muitos outros); ZFM Records (Grupo Nosso Canto); Dabliú Discos (Suzana Salles) etc; Natasha Records (MV Bill, Virgínia Rodrigues, Afroreggae e Mart’nália, entre outros); Nikita Music (Velha Guarda da Mangueira), Dubas, Acari Records (Luciana Rabello, Amélia Rabello, Álvaro Carrilho, Maurício Carrilho e coletâneas de choro), Biscoito Fino (Sinfonia do Rio de Janeiro, Joyce, Olívia Hime e coletâneas); Selo Quelé (parceria da Acari Records e Biscoito Fino em homenagem a Clementina de Jesus e que lançou discos de Paulo César Pinheiro, Roque Ferreira, Pedro Amorim, Maurício Carrilho e Amélia Rabello), Selo Rock Xpress (Recife: grupo Câmbio Negro H.C), Saci (Maurício Tapajós, Aldir Blanc, Nei Lopes, Amélia Rabello e Sérgio Santos, entre outros), Alma Produções (Aldir Blanc, Clarisse Grova, Walter Alfaiate etc); Kuarup (Vander Lee), Selo Rádio MEC (Wilson Moreira, Diana Pequeno, Paulo César Feital, Telma Tavares, Cláudio Jorge & Luiz Carlos da Vila, entre outros), Deck Disc, Monstro Disc (Grupo Pata de Elefante, do Rio Grande do Sul), T-Rec,
Astronauta, Tamborete, Midsummer Madness, London Burning, Rob Digital, Fina Flor, Lua Discos, MCD, Azul Music, Albatroz, Candeeiro, Selo Peixe Vivo (Conexão Carioca nº 1 e Conexão Carioca nº 3), Sun Records, Carioca Discos (especializada em samba) que lançou a coletânea “Meninos do Rio”, aglutinando Jair do Cavaquinho, Elton Medeiros, Nei Lopes, Dona Ivone Lara, Baianinho, Niltinho Tristeza, Casquinha, Zé Luiz do Império, Nilton Campolino, Monarco, Luiz Grande, Dauro do Salgueiro, Nelson Sargento, Jurandir da Mangueira e Aluízio Machado, Selo Quitanda (de Maria Bethânia, lançando além dos discos da cantora o CD ‘Vozes da Purificação’, de D. Edith do Prato). O Selo Baratos Afins, de São Paulo, foi o responsável por boa parte da renovação da cena musical paulista. Para finalizar, o Selo SescRio.Som com a Série “Poetas da Canção”, lançando discos dos letristas Sergio Natureza e Salgado Maranhão, ambos em 2005 e ainda o CD “Gozos da alma”, de Geraldo Carneiro, em 2006 e ainda diversos outros selos em vários estados da federação, provando sempre que nem só das majors Universal Music, EMI, Warner e Sony-BMG, vive e sobrevive a cultura musical brasileira.

Como fechamento recorro a uma matéria publicada no jornal O Globo, Caderno B, em julho de 2007, “Acordos devem facilitar os negócios da música – Editoras de música e selos independentes reforçam parceria de olho em novos tempos”, de autoria do poeta e crítico musical Antônio Carlos Miguel, texto no qual podemos perceber os novos tempos da música brasileira em relação à produção e à divulgação do produto. Mais uma vez as grandes gravadoras (com suas editoras) tentam se adequar à realidade, assim como aconteceu nos Estados Unidos décadas antes.

Segundo Antônio Carlos Miguel

“As principais editoras de música e a associação das gravadoras independentes
assinaram parceria que deverá fortalecer o mercado fonográfico e atesta o crescimento da produção independente. Apesar da crise do disco, hoje, os produtores filiados à Associação Brasileira de Música Independente (ABMI), com 132 membros, já respondem por boa parte da música brasileira aqui gravada. Enquanto isso, os 18 associados da até então poderosa Associação Brasileira de Produtores de Discos (ABPD), incluindo as multinacionais EMI, Sony BMG, Universal e Warner, teriam diminuído em 60% o seu investimento, trocando novos discos brasileiros por lançamentos internacionais ou reedição de seu acervo...”.

De qualquer maneira, vários artistas têm procurado saídas diferentes para seus produtos, muitos deles fundando seu próprio selo, pelo qual grava e lança seus discos e usando as grandes gravadoras somente para distribuição. Caso como o Lulu Santos no novo disco de 2007 “Longplay”, gravado de forma independente e distribuído pela gravadora Som Livre, ou ainda Maria Bethânia com seu selo Quitanda, atrelado à distribuição da gravadora Biscoito Fino. Djavan com seu selo e editora Luanda Records e Elba Ramalho com o selo Ramax, criado em 2001 e distribuído pela gravadora BMG, entre muitos outros artistas que criaram seu próprio selo e que usam o suporte administrativo das grandes gravadoras apenas para distribuição, assim como acontece em outros países.

Na verdade mesmo... o nome deste tipo de produção não deveria ser “Independente” e sim “Depende”, pois depende somente do artista, que dali em diante assume a persona de provedor do seu próprio trabalho. Independente, a meu ver, são os disco feitos por gravadoras, trabalhos que o artista, na maioria das vezes, nem tem voz ativa na produção, escolhas das composições e músicos que irão atuar, sendo assim, o disco geralmente fica um monstrinho, bem a cara da mãe (a gravadora), vindo a reforçar somente a cultura do entretenimento e nunca a arte-musical de um povo, como se referiu Paulo César Pinheiro no início deste texto.
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